“O evangelho é Jesus Cristo.”
“Todos precisamos de Deus, seja numa floresta
sem fim, seja num condomínio fechado.”
TEXTO BASE: Mateus 24:14
VIDA
Revista
Ultimato edição 303
Precoce é a
pessoa que faz alguma coisa antes do tempo esperado. É o caso do mineiro de
Nanuque que se converteu aos 7 anos de idade durante uma escola bíblica de
férias ministrada pela própria mãe; que se despertou para o trabalho
missionário aos 14 anos ao ouvir uma pregação do próprio pai; que ingressou num
seminário teológico logo após completar 18 anos; que se formou em teologia e
casou-se um mês depois de comemorar o 23º aniversário; que arrumou as malas e
se mudou com a esposa (ele com 26 anos e ela com 24) para uma aldeia bem no
interior de um país africano para prestar assessoria à igreja Konkomba em Gana
e consultoria antropológica e missiológica a países da África e da América do
Sul; que traduziu o Novo Testamento inteiro para uma das línguas dos Konkomba
em sete anos e meio. Desde 2001, Ronaldo Almeida Lidório, 40 anos, casado com a
enfermeira e obstetra Rossana Vivianne Gassett Lidório, 38, tem se dedicado ao
plantio de igrejas, à análise lingüística e tradução da Bíblia e ao
desenvolvimento humano e social na Amazônia indígena. O casal tem uma filha
(Viviane) de 17 anos e um filho (Ronaldo Junior) de 15, e mora em Manaus.
MISSÕES ENTRE OS KONKOMBA
Os Konkombas formam uma nação tribal que habita o nordeste de Gana,
noroeste africano, onde são faladas 8 principais idiomas subdivididos em 23
dialetos. Todas essas etnias são denominadas pelo governo de Gana como
"Konkombas" e algumas outras como "Kombas", sendo porém
estes nomes alienígenas às próprias tribos.
Desde 1994 o casal de missionários Ronaldo e
Rossana Lidório está envolvido no propósito de alcançar um ramo da tribo
Konkomba, que se intitula Bimonkpelns (ou "homens que vivem"), na
região de Koni ao nordeste de Gana, uma população superior a 70000 habitantes.
Em 2006 foram contabilizadas 23 igrejas e 6000
convertidos em 21 comunidades. Até o momento, foram treinados biblicamente
cinco evangelistas e 30 presbíteros. Outros 60 líderes estão em treinamento
através de cursos de vida cristã que estão sendo ministrados pelos
evangelistas. No total, 87 líderes estão ativos nas diversas igrejas e
ministérios, sendo apenas os cinco evangelistas sustentados pela Igreja e com tempo
integral para o trabalho.
Em 2011, por iniciativa própria, a Igreja
Konkomba organizou um grupo de irmãos para a tradução do Antigo Testamento para
a língua Limonkpeln. Além disso, igrejas têm sido plantadas no norte do Togo,
totalizando 48 entre Gana e Togo, com uma multiplicação de líderes a frente de
cada uma destas igrejas.
TRADUÇÃO DA BÍBLIA
Por Ronaldo
Lidório
Revista
Ultimato edição 290
Finalizações freqüentemente nos trazem alívio e alegria. Especialmente
aquelas que são fruto de uma longa espera.
Nesses dias, estamos particularmente alegres
pela conclusão do processo de tradução do Novo Testamento para a língua
Limonkpeln, um dos dialetos do povo Konkomba, em Gana, África. A figura que me
vem à mente neste momento é a do início, quando Labuer e eu sentávamos embaixo
de uma árvore próxima à minha casa e durante 3 ou 4 horas por dia trabalhávamos
na ortografia da língua Limonkpeln. Na época, visávamos apenas fazer uma
cartilha e alfabetizar o povo em sua própria língua.
Foram 7 anos e meio de trabalho — um trabalho
silencioso e sem resultados empolgantes durante o seu processo. No início os
Konkomba não entendiam o porquê daquele olhar pensativo, das horas e horas
sobre um computador, daquele monte de livros por todo lado. Ficavam a me
observar durante o dia, de longe, sussurrando baixinho uns com os outros.
Aos poucos a Igreja nasceu e alguns rascunhos
começaram a ser usados. Eles aprenderam a amar a Palavra e, a cada dia, surgiam
inúmeras perguntas. Os resumidos capítulos em mãos tornaram-se rapidamente
insuficientes para a demanda espiritual. Publicamos, então, Mateus, Atos e
Romanos, que foram recebidos com expectativa. O povo memorizava textos inteiros
e discutia as aplicações em reuniões sem fim. A Igreja, vendo nosso esforço, se
autodesafiou a cooperar. Começou a orar e jejuar para que tivesse a Palavra na
sua língua, o Novo Testamento completo. Passei a me sentir constrangido (e às
vezes acuado) quando resolvia tirar uma tarde livre para brincar com as
crianças. Por meio de uma mensagem silenciosa, a Igreja parecia censurar-me.
Afinal a prioridade deveria ser trabalhar na tradução. Apenas o plantio de
igrejas, que fazíamos em viagens pela região, sobrepunha ao anseio da tradução.
Era necessário progredir.
Em 1997, os líderes da Igreja
Konkomba-Limonkpeln resolveram se envolver diretamente no processo. Sabiam que
eu possuía um ajudante lingüístico, com tempo parcial. Decidiram “separar”
outros três com tempo integral. Cuidariam das roças desses ajudantes para que
se dedicassem às correções do texto. Esses quatro amigos abençoados — Labuer,
Balabon, Tiagri e Naason — tomaram paixão pelo trabalho e também aprenderam a
trabalhar dia e noite. Creio que, nos últimos 7 anos e meio, jamais houve um
dia sem que se trabalhasse no texto do Novo Testamento.
Rossana e as crianças sempre foram
benevolentes com meu tempo usado na tradução. Até hoje Ronaldo Junior, quando
indagado onde estou, prontamente responde: “Papai está no computador fazendo
uma Bíblia” — não importa o que de fato eu esteja fazendo. Eu procurava
concentrar o trabalho sempre à noite, depois que todos dormiam. Era mais fresco
e havia a quietude necessária.
Outro dia juntei todo o material utilizado,
desde a tradução primária até a retrotradução, passando pelas cinco correções
gerais. São pilhas e pilhas de papéis, centenas de e-mails trocados com
consultores, inúmeras cartas em português, inglês, Konkomba, mais de 30 livros
de consulta utilizados. O resultado cabe na palma da mão, em apenas um CD.
A força da Igreja Konkomba mostrou-se ainda
mais viva na última correção. Eu precisava que a equipe fizesse uma última e
minuciosa leitura do texto. A Igreja então separou uma casa e preparou-a com o
cenário de quietude necessário para o trabalho, pedindo que, durante um mês,
ninguém se aproximasse. Trouxe os quatro ajudantes lingüísticos, que ali
permaneceriam durante 3 semanas e meia. Designaram mulheres da Igreja, boas
cozinheiras, que proveram o alimento necessário, e do melhor. Assim,
praticamente isolaram esse grupo naquela casa até completarem a tarefa,
cobrindo-os de oração.
Entre tantos colaboradores, um precisa ser
mencionado primeiro. O Rev. Francisco Leonardo Schalkwijk era diretor do
Seminário Presbiteriano do Norte quando, logo no início do meu curso naquela instituição,
abordou-me com a pergunta: “Você quer ser missionário entre povos sem o
evangelho?” Depois de ouvir uma temerosa resposta positiva, passou a
aconselhar-me. Um dos conselhos cravou no meu coração: “Estude bem o grego e
você economizará anos de trabalho na tradução”. Um outro colaborador silencioso
foi Mebá, o primeiro convertido entre os Konkomba-Limonkpeln. A cada texto lido
durante as correções, ele sempre interrompia, dizendo, benevolente: “Está muito
bom e todos vão entender. Mas, se utilizasse esta ou aquela expressão, ficaria
parecendo que foi escrito por um Konkomba...”
Falemos do presente. O sentimento ao entregar
o texto é surreal. Pensei que sentiria algo entre alegria e alívio, mas senti,
sobretudo, temor. E se pudéssemos melhorar a expressão usada para
“longanimidade”? Não teria sido imprudência optar por “sacrifício” o termo que
historicamente tem sido usado no animismo fetichista? E “Espírito Santo” que,
explicativamente, teve de ser traduzido por “Espírito que é puro e é pessoa, não
apenas força”? Certamente ficou longo para nós, mas talvez não para uma cultura
onde a maioria dos espíritos não é personificação, e, sim, energia impessoal. A
numerologia bíblica em uma língua em que se conta até 500 (depois disso as
regras mudam para um discurso binário extenso) torna-se muito complexa. Os
“144.000” de Apocalipse 14 tomaram cinco linhas.
O Konkomba-Limonkpeln é uma das três
principais línguas do povo Bikpakpaln, conhecido como Konkomba pelos de fora.
De fato, este não é um termo usado ou mesmo conhecido pela maioria para se
identificar. Eles habitam as savanas no nordeste de Gana e noroeste do Togo.
Formam etnias fortes, com grave valorização da cultura e orgulho de sua língua.
No país são conhecidos como Tiwoor aanib (povo do mato), por preferir se isolar
em regiões mais distantes. No imaginário popular são agressivos e senhores de
guerras. Mas, na verdade, são extremamente hospitaleiros e leais. Para eles a
maior vergonha é mentir. A maior virtude é honrar os pais já velhos e tê-los na
memória quando se forem. Os filhos são criados por todos, e não há órfãos. A
Wycllife trabalha há décadas com uma das etnias, os Bichaboln, a qual possui a
Bíblia completa em seu idioma. Nós iniciamos o trabalho com uma segunda etnia,
os Bimonkpeln. E ouvimos recentemente sobre um esforço metodista em alcançar a
terceira etnia, os Bisachuln. Parece-me que Deus tem um plano para esse povo.
PROJETO AMANAJÉ
Atualmente, o missionário Ronaldo Lidório e sua esposa Rossana lideram na Amazônia o Projeto Amanajé, um trabalho de médio e longo prazo com povos indígenas, de alcance missionário e desenvolvimento de programas sociais relevantes. A missão do casal foi, inicialmente, diagnosticar uma área de necessidade evangelística dentro do universo indígena amazônico, organizar uma equipe e prepará-la para o Projeto.
Lidório conta que o primeiro passo foi a
realização de alguns mapeamentos na Amazônia, quando ele e Rossana puderam
dispor de fotos via satélite, informações do missiólogo Paulo Bottrel da AMTB (Associação
de Missões Transculturais Brasileiras) e outros bancos de dados. Eles
percorreram aproximadamente três mil quilômetros em diversos rios e áreas
indígenas e identificaram duas áreas com graves necessidades, nas quais se concentraram.
A equipe do Projeto Amanajé é formada por 11
pessoas que realizam um trabalho missionário junto a comunidades, na selva, no
Alto Rio Negro, e estão aprendendo uma das línguas tribais.
Atualmente, o Projeto está na terceira fase:
o desenvolvimento estratégico do processo evangelístico multi-étnico e dos
programas sociais que envolvem saúde e subsistência em áreas carentes.
Igrejas locais e irmãos sustentam voluntariamente
cada missionário do Projeto, e os próprios missionários sustentam a sua área de
atuação ministerial. Há também um fundo através do qual cada missionário contribui
para manter os bens comuns como canoas e motores. A Visão Mundial e o grupo
Hebron cooperam com a manutenção de alguns projetos sociais.
ENTREVISTA DA REVISTA ULTIMATO COM LIDÓRIO (ANO 2006)
Revista
Ultimato edição 303
Ultimato — A população indígena, que diminuía a cada ano no Brasil, voltou a
crescer. Qual é a explicação?
Lidório — Calcula-se que havia 1,5 milhão de indígenas em 1500, os quais
somam hoje pouco mais de 350.000, configurando um dos maiores processos
etnofágicos nos últimos 500 anos. Porém, a população indígena, que diminuía a
cada ano, voltou a crescer de forma animadora nas últimas décadas. A existência
de programas de saúde que previnem e tratam as doenças em geral, e também as
mais específicas como a malária, possuem uma contribuição acentuada. Programas
de subsistência têm auxiliado ao prover mais proteínas e vitaminas em áreas
indígenas onde o alimento se resumia quase que puramente ao carboidrato. A
presença missionária também é responsável por inúmeros programas de
desenvolvimento humano porém sua principal marca social é a valorização da
língua materna, provendo grafia e gerando programas de alfabetização que
asseguram a identidade lingüística e, conseqüentemente, cultural, em diversas
etnias. Há casos, como o dos Dâw do Amazonas, em que os missionários da
Associação Lingüística Evangélica Missionária (ALEM) realizaram um verdadeiro
resgate lingüístico-cultural. Era uma etnia que pouco falava sua língua, vivia
dispersa e excluída em um contexto urbano e quase perdera por completo sua
identidade indígena. Ao encontrá-los hoje, vivendo em sua aldeia com alegria e
dignidade, é visível o sentimento de cidadania e humanização. Falam sua língua
com prazer e a ensinam aos seus filhos. Viver sua própria cultura os define
como gente perante um universo onde outros também expressam abertamente seus
valores culturais. Identidade cultural faz bem à alma.
Ultimato — Você está fazendo o mapeamento da região amazônica. Qual a
finalidade do mapeamento?
Lidório — Estou envolvido na pesquisa de algumas áreas. O objetivo
central é identificar ajuntamentos humanos com graves carências sociais e
espirituais. As estatísticas convencionais que definem os agrupamentos
indígenas não expressam em profundidade a situação social, o índice de
preservação lingüística, o relacionamento intercultural com outras etnias da
região e com os não-indígenas, entre outros. Esses dados são importantes para o
desenvolvimento de programas cujo objetivo seja contribuir de maneira relevante
com esta realidade. A ONG ATINI, por exemplo, que luta contra o infanticídio
que ocorre em abundância no contexto indígena brasileiro, é resultado de longa
observação por parte da JOCUM dessa prática social entre o povo Suruwahá e
outros grupos. A pesquisa ajuda-nos a identificar os pontos de tensão e a
participar na solução de conflitos.
Ultimato — Quantos grupos indígenas temos hoje no território
nacional? Pode haver outros?
Lidório — Os dados divergem de uma listagem para outra por considerarem,
ou não, alguns grupos ainda não reconhecidos oficialmente como indígenas. Creio
ser seguro, porém, pensarmos em 258 grupos indígenas com identidade definida no
Brasil, além de outros cinqüenta ainda isolados. Grupos isolados são aqueles
que não possuem contato com o mundo externo, e normalmente não se sabe se são
uma variação cultural de um grupo já reconhecido ou se são novos. Muitos grupos
indígenas estão em fase de extinção — extinção não necessariamente
populacional, mas cultural e lingüística. Aryon Rodrigues estima que, na época
da conquista do Brasil, eram faladas 1.273 línguas, ou seja, perdemos 85% de
nossa diversidade lingüística em 500 anos. Das línguas sul-americanas, 27% já
não são aprendidas pelas crianças. Esta é uma extinção silenciosa que mata não
apenas a língua mas também a identidade e a esperança de muitos povos.
Ultimato — Você é a favor da tradução da Bíblia para grupos lingüísticos
reduzidos, com uma população de cem falantes, por exemplo? Por quê?
Lidório — O critério bíblico segundo o qual uma alma vale mais do que o
mundo inteiro mostra que na economia de Deus a carência de um único indivíduo é
o suficiente para qualquer esforço. E, se observarmos a tradução bíblica de
perto, veremos que ela não é um processo isolado, mas uma atividade associada à
grafia de uma língua, sua análise, desenvolvimento de cartilhas, alfabetização
e fomentação de registros históricos e culturais pelo próprio povo, que
contribuem para sua afirmação humana e social. Quando um povo lê a Bíblia em
sua língua materna, este exercício possui um profundo valor tanto espiritual
quanto sociocultural. Desta perspectiva, talvez a tradução bíblica seja ainda
mais prioritária para os grupos minoritários, mais suscetíveis à perda
lingüística e cultural, do que para os grandes grupos. Na África tivemos
contato com o casal Stevenson, que traduzia a Bíblia para um grupo de quatorze
pessoas cuja língua era uma variação lingüística dos Bikuln. Gastaram ali mais
de 25 anos de suas vidas e, ao entregarem um dos livros do Novo Testamento nas
mãos de um jovem da tribo, ele afirmou que entendera que o amor de Deus não é
proporcional ao tamanho da tribo, pois Deus ama igualmente uma grande etnia e
um pequeno grupo de quatorze pessoas. Creio que ele entendeu bem.
Ultimato — O sonho indígena de uma terra sem
males pressupõe que os indígenas acreditam na vida após a morte? Eles têm
alguma noção da ressurreição do corpo?
Lidório — Várias culturas indígenas possuem uma cosmologia definida pelo
aquém e pelo além, a qual inclui o conceito de vida eterna em uma terra sem
males. Esta cosmovisão mais escatológica da vida pode ser identificada não
apenas entre os indígenas mas também em diversos outros grupos espalhados pela
terra. Os Konkomba de Gana crêem que o pacham é um lugar para onde irão os que
morrem já bem velhos e com muitos filhos. Os Chakali falam sobre o báthan como
sendo o destino pós-morte de todo homem, sendo que aqueles que não enganaram o
próximo terão comida em abundância. O restante viverá da boa vontade do
primeiro grupo. A convicção de uma terra sem males entre os indígenas
brasileiros é, em alguns casos, tão enfática que pode ser relacionada como uma
das possíveis causas da abundância de suicídios. Quando um jovem se vê sem
saída, ou envergonhado, ou ainda profundamente melancólico, por vezes opta pelo
suicídio, não apenas como uma maneira de fugir do conflito pelo qual passa, mas
movido também pela convicção de que o mundo pós-morte será melhor, sem dor. Há
poucos registros, porém, sobre crenças ligadas à ressurreição do corpo em
culturas indígenas.
Ultimato — Onde você passa mais tempo: com a família, em Manaus; com os
indígenas, em suas tribos; ou em viagem pelos rios da Amazônia?
Lidório — Neste ano nos mudamos para Manaus por ser um ponto central
para nossas viagens e atividades no Norte. Como faço várias viagens por ano,
dentro e fora do Amazonas, passo muito tempo fora de casa. As viagens fluviais
na Amazônia são as mais longas, pois envolvem distâncias consideráveis. Porém
aproveitamos bastante o tempo juntos em família. Quando estamos em casa, nossos
filhos, Vivi e Ronaldo Junior, têm prioridade de tempo e atenção. Também temos
um compromisso de passar de dois a três meses, a cada dois anos, na África para
treinamento de liderança.
Ultimato — Como você se sente fora da chamada civilização, em plena mata, em
contato com a beleza exuberante da natureza não poluída?
Lidório — Tanto na África quanto na Amazônia, o sentimento de estar em
um lugar remoto com pouca intervenção humana é fascinante. Observar o verde
intocado da Amazônia, por exemplo, nos faz pensar muito no poder de Deus,
Criador de algo tão belo e cativante. No entanto, depois de viver nesses
ambientes mais distantes por algum tempo, perde-se um pouco do romantismo e os
desconfortos da privação das facilidades nas quais fomos criados passam a ser
mais sentidos. Em Gana, na África, passávamos até seis meses na aldeia viajando
apenas duas vezes por ano para uma área urbana. Quando chegávamos à capital,
Accra, meu maior prazer era apertar um interruptor e ver a luz acender. O de
Rossana era abrir uma torneira e ter água corrente. Quando perguntávamos ao meu
filho caçula, ainda pequenino, do que ele sentia falta na aldeia, ele
respondia: Do McDonald’s!
Ultimato — Segundo dados do governo, em 2005 16.700 quilômetros quadrados da
floresta amazônica foram transformados em terras agricultáveis, com a derrubada
de 1 bilhão de árvores. A Amazônia poderá vir a ser uma região independente do
Brasil por sua importância no cenário mundial?
Lidório — A destruição da floresta é assunto preocupante, porém não
ocorre de maneira uniforme na Amazônia. Em algumas áreas indígenas, como no
Alto Rio Negro, por exemplo, não é perceptível. Nos arredores de Porto Velho,
Rondônia, é evidente. Creio que o problema está localizado especialmente
próximo a centros urbanos, onde se escoa mais facilmente a madeira, e em
setores de expansão agrícola, onde há grandes queimadas. Não creio que a
Amazônia venha a ser independente justamente por sua importância nos cenários
mundial e, conseqüentemente, nacional. Penso que o desenvolvimento da política
de conservação ambiental só acontecerá quando ela for trabalhada com a
população local — que é a única capaz de coibir o desmatamento, seja por não
praticá-lo, seja por fiscalizar aqueles que o praticam. Políticas externas
dissociadas de uma consciência local não surtirão efeito.
Ultimato — A relação entre a FUNAI e as missões indígenas está melhor agora?
Lidório — Minha impressão é que há uma boa relação que caminha para se
consolidar. O trabalho da FUNAI é relevante e desafiador, tendo em mente a
diversidade étnica indígena no Brasil e sua função de fiscalizá-la. Hoje
vivemos um momento em que também cresce o movimento missionário formado pelos
próprios indígenas. O CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes
Indígenas) tem demonstrado de forma acentuada essa força. Costumo dizer que a
necessidade humana é a mesma, em qualquer cultura e contexto, e é preciso
juntar forças para minimizá-la. Apenas a roupagem muda. Ao lembrar-me do
indígena excluído e discriminado, sem alimento nem dignidade, nas margens do
rio Solimões, percebo nele a mesma dor e constrangimento do rapaz urbano e
também excluído, sentado na calçada em uma rua de Recife, invisível na
multidão. Jesus, ao falar sobre um homem judeu caído ao longo do caminho e
socorrido por um samaritano, nos aponta que as crises humanas são idênticas e
ocorrem em qualquer sociedade. Muda apenas a roupagem externa, como língua,
cultura, cosmovisão e contexto.
Ultimato — Qual foi o trabalho que você e
Rossana desenvolveram em Gana na década de 90?
Lidório — Fomos para Gana em 1993 e lá permanecemos até 2001, quando
viemos trabalhar na Amazônia. Na África atuamos com a etnia
Konkomba-Limonkpeln, uma das quatro etnias Konkomba, com plantio de igrejas e
tradução bíblica, e desenvolvimento de projetos sociais na área de educação e
saúde. Pela graça de Deus há hoje ali 23 igrejas, pastoreadas por cinco
pastores Konkomba. Várias delas foram plantadas por iniciativa do próprio povo.
A clínica médica, que atende mais de 6 mil pessoas por ano, e as escolas, que
educam mais de 400 crianças, são totalmente dirigidas pelos Konkomba. Um dos
ministérios naquele lugar que encheu nosso coração foi a tradução do Novo
Testamento para a língua Limonkpeln. Fomos despertados para essa necessidade
porque no início os crentes vinham de aldeias distantes para participar de
estudos bíblicos na aldeia onde morávamos, Koni. Passavam alguns dias conosco e
memorizavam versículos que transmitiriam a outros. Uma mulher veio de
Kadjokorá, uma aldeia que ficava a quatro dias de caminhada. Ela também
memorizou os treze versículos e participou do encontro. Voltando para sua
aldeia, depois de dois dias de caminhada, ela esqueceu um dos versos. Não
pensou duas vezes. Voltou aonde estávamos e disse que estava ali porque a
Palavra de Deus era preciosa demais para se perder ao longo do caminho.
Memorizou de novo o verso e recomeçou sua jornada de quatro dias de caminhada
para casa. Naquele momento nos comprometemos com a tradução do Novo Testamento
para o Limonkpeln, que, pela graça de Deus, foi entregue em outubro de 2004 em
uma linda festa com cerca de mil Konkombas louvando a Deus sob a sombra de
algumas mangueiras.
APLICAÇÃO
E será pregado (Kerygma)
este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho (Martíria) a todas as nações. Então, virá o fim. Mateus14:24
Há dois termos largamente usados no Novo Testamento que retratam o
caráter cristão: proclamação e testemunho. O termo grego para ‘proclamação’ é
‘Kerygma’: a forma estratégica e inteligível de comunicar a mensagem do
evangelho. É a Igreja se preparando, estudando e analisando as possibilidades
de comunicar o evangelho a um grupo, seja uma pessoa, família ou povo. Isto é
Kerygma.
‘Martíria’ é o termo grego para ‘testemunho’
e sempre está ligado ao Kerygma. Entretanto ‘Martiria’ não é uma proclamação
inteligível e estratégica como encontro de casais, acampamentos evangelisticos,
evangelismo explosivo ou células familiares. Martiria é testemunho de vida, a
personalidade transformada pelo Senhor. É domínio próprio em casa, ser justo
com os empregados, ser brando no falar. É ser a imagem de Jesus.
A Igreja foi chamada para ser primeiramente
Martírica – viver com fidelidade tudo aquilo que crê - e só então assumir uma
postura Kerygmática.
O versículo de Mateus nos ajuda a responder 3
perguntas importantes a cerca da missão da Igreja:
1.
O que será pregado?
O evangelho deverá ser pregado, e o evangelho nada mais é que Jesus, a
boa notícia de Deus.
2.
Como será pregado?
O evangelho será comunicado através da dupla proclamação e testemunho,
ou seja, anunciando e vivendo o evangelho aonde nos encontrarmos.
3.
Aonde será pregado?
O evangelho será pregado em todo lugar, e prioritariamente e com persistência
aos povos ainda não alcançados.
Extraído da pregação de Ronaldo Lidório no VI CBM (Congresso Brasileiro
de Missões) em 2011.
MATERIAL UTILIZADO
·
Instituto Antropos < http://www.http://instituto.antropos.com.br
>
·
Revista Ultimato < http://www.ultimato.com.br >
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