domingo, 16 de outubro de 2011

Movimento pentecostal e neopentecostal

A História do Cristianismo Através dos Séculos (aula 32)
Por Alderi Sousa de Matos
William Seymour

Introdução

O objetivo deste estudo é refletir sobre um fenômeno recente e controvertido do cenário religioso do Brasil que é o movimento neopentecostal. Esse movimento é importante por causa do grande impacto que tem causado e pela visibilidade que tem adquirido nos últimos anos na sociedade brasileira. Os métodos arrojados e agressivos da Igreja Universal do Reino de Deus, o estilo de vida sofisticado do casal que dirige a Igreja Renascer em Cristo, os onipresentes programas de televisão das igrejas neopentecostais, os testemunhos de fé de artistas, atletas e outras celebridades, tudo isso e muito mais tem contribuído para tornar esse movimento conhecido e discutido.


O impacto do neopentecostalismo tem sido particularmente sentido pelas igrejas evangélicas do Brasil. O protestantismo brasileiro não é mais o mesmo desde que surgiu o novo movimento. Esse impacto tem sido experimentado de duas maneiras: primeiramente, muitas igrejas, sejam elas históricas ou pentecostais, têm perdido membros para o neopentecostalismo; em segundo lugar, essas igrejas, especialmente as históricas ou tradicionais, tem sido influenciadas em sua teologia, liturgia e organização pelas práticas neopentecostais. O “sucesso” do novo movimento tem sido especialmente cativante para os líderes de muitas igrejas, levando-os a acreditar que, se adotarem os mesmos métodos e ênfases, suas igrejas também irão obter o tão sonhado crescimento.


O objetivo deste estudo não é simplesmente criticar ou condenar o movimento neopentecostal como um todo. A Igreja Presbiteriana do Brasil já tem se pronunciado oficialmente sobre a questão, reconhecendo que as igrejas neopentecostais são cristãs e são evangélicas. Todavia, tais igrejas apresentam desvios ou distorções em seus ensinos e práticas que as afastam do cristianismo histórico em alguns aspectos e que, mais especificamente, as põem em conflito com a fé reformada.[1] À luz da Confissão de Fé de Westminster, podemos considerá-las como “igrejas menos puras”. Diz a Confissão de Fé que a Igreja de Cristo “tem sido ora mais, ora menos visível. As igrejas particulares, que são membros dela, são mais ou menos puras conforme nelas é, com mais ou menos pureza, ensinado e abraçado o Evangelho, administradas as ordenanças e celebrado o culto público. As igrejas mais puras debaixo do céu estão sujeitas à mistura e ao erro...” ( cap. 25, itens IV e V).


Por outro lado, essa reflexão deve conduzir-nos a uma séria autocrítica e ao reconhecimento de que o novo movimento tem ocupado espaços que já deveriam ter sido ocupados pelas igrejas mais antigas, inclusive a presbiteriana. Portanto, o propósito desta análise é tríplice: conhecer melhor o neopentecostalismo em seus diferentes ângulos; identificar os seus pontos fracos nas áreas já aludidas; apontar maneiras como melhor se pode enfrentar esse desafio e quais as áreas em que as igrejas reformadas devem progredir.


É importante ressaltar que não se pretende nem é possível neste breve estudo fazer uma análise profunda e exaustiva do neopentecostalismo. Para tomar apenas a área da doutrina, existem dezenas de questões altamente complexas sobre os quais muitos livros têm sido escritos. O interesse primordial é dar uma visão ampla do movimento e destacar os seus aspectos mais relevantes no que diz respeito à igreja presbiteriana.


Inicialmente será feita uma breve abordagem histórica, destacando alguns exemplos interessantes de movimentos “carismáticos” ao longo da história da igreja até se chegar ao pentecostalismo brasileiro. Em seguida, se fará um apanhado das principais peculiaridades desse movimento nas áreas da teologia, culto, métodos, liderança e ética. Procurar-se-á avaliar esses pontos à luz das Escrituras e da fé reformada.



1. Aspectos históricos


São mencionados a seguir alguns poucos exemplos ilustrativos de movimentos e fenômenos carismáticos extraídos da história da igreja.



1.1 A igreja primitiva



1.1.1 Corinto


Já nos dias da igreja primitiva houve a ocorrência de manifestações que hoje chamamos de carismáticas. O exemplo clássico é o da comunidade cristã de Corinto. Como todos sabem, naquela igreja apostólica houve manifestações extraordinárias de línguas, profecias e outros fenômenos. Todavia, tais manifestações estavam diretamente associadas com muitos dos problemas e conflitos vividos por aquela comunidade. Era como se os dons do Espírito, ao invés de serem um fator de união, estivessem sendo um fator de divisão no corpo de Cristo. Portanto, desde o início os fenômenos carismáticos foram um elemento tanto de vitalidade quanto de controvérsia no seio da cristandade. Curiosamente, tais fenômenos espetaculares parecem ter estado especialmente ligados à igreja de Corinto. Pouco se diz a respeito dos mesmos nos outros documentos do Novo Testamento (por exemplo, as línguas são mencionadas apenas em Mc 16.17; At 2.3-11; 10.46; 19.6; e 1 Co 12-14). Parece que nas outras igrejas apostólicas, essas manifestações eram inexistentes, moderadas ou exercidas de modo mais equilibrado e menos egocêntrico do que em Corinto.



1.1.2 Montanismo


Com o passar do tempo, o exercício dos ministérios e dons carismáticos entrou em declínio na vida da igreja. Uma das razões principais foi a luta contra as heresias que caracterizou os primeiros séculos do cristianismo. Houve casos em que as manifestações carismáticas estavam associadas com ensinos e práticas que a igreja antiga considerou divergentes da fé bíblica e apostólica. Um bom exemplo disso foi o movimento conhecido como montanismo ou “nova profecia”, que surgiu por volta do ano 157 na Frígia, uma província da Ásia Menor. Dizendo-se inspirado pelo Espírito Santo, um cristão chamado Montano começou a profetizar extaticamente, sendo seguido por duas profetizas, Priscila e Maximila. Eles afirmavam serem os últimos de uma linhagem de profetas e convocaram os crentes a se prepararem para a descida da Jerusalém Celestial. O montanismo teve algumas ênfases positivas (o Espírito Santo, a santidade da igreja) e chegou a atrair um grande teólogo, Tertuliano, que abraçou o movimento. Ao fim, todavia, a “nova profecia” foi rejeitada pela igreja, principalmente por seu emocionalismo, desobediência às autoridades da igreja e revelações extrabíblicas. Os profetas montanistas afirmavam receber comunicações diretas de Deus, e as suas profecias ou oráculos eram considerados como normativos pelos seguidores, praticamente no mesmo nível das Escrituras. Além disso, foram acusados de falsas profecias, pois suas previsões acerca do iminente final dos tempos não se cumpriram. Mesmo assim, o montanismo subsistiu por vários séculos.


Durante a Idade Média, continuaram a surgir movimentos esporádicos que tinham as mesmas características básicas do montanismo. Mais tarde, com a Reforma do século 16, também houve ocorrências similares entre grupos protestantes, como foi o caso de alguns anabatistas e dos quakers. Os quakers surgiram na Inglaterra, no século 17, sob a liderança de George Fox (1624-1691), que pregou a mensagem da “nova era do Espírito.” O movimento enfatizava a “luz interior,” ou comunicações diretas do Espírito, que eram tão importantes quanto as Escrituras. Nas suas reuniões, os quakers aguardavam que o Espírito Santo falasse a eles e através deles.



1.2 O século 19



1.2.1 Edward Irving




Um interessante exemplo do início do século 19 é o de Edward Irving (1792-1834), considerado um dos precursores do moderno movimento carismático.[2] Irving era um pastor da Igreja Presbiteriana da Escócia que se transferiu para Londres após um ministério inicial em Glasgow. Logo, seus dotes de oratória, seu carisma pessoal e suas mensagens ungidas começaram a atrair grandes multidões à igreja que pastoreava. Ele passou a fazer parte de um grupo que se reunia para estudar escatologia. Convicto da iminente volta de Cristo, o grupo passou a orar por um derramamento do Espírito. No início da década de 1830, após surgirem algumas manifestações carismáticas na Escócia, houve a ocorrência de línguas e profecias na igreja de Irving, que as considerou uma obra do Espírito Santo. Em 1832, Irving foi afastado do pastorado da igreja, sendo acompanhado por cerca de 600 seguidores, que criaram uma nova denominação, a Igreja Católica Apostólica, caracterizada por uma eclesiologia complexa e uma liturgia altamente elaborada, além da sua ênfase carismática. No ano seguinte, Irving foi deposto do ministério sob acusação de heresia. Ele afirmava que Cristo havia nascido com uma natureza humana pecaminosa, que foi, todavia, preservada sem pecado e incorruptível graças à atuação do Espírito Santo. No final de 1834, Irving veio a falecer com apenas 42 anos, vitimado pela tuberculose. Nos seus últimos meses de vida, ele estava convicto de que seria curado da sua enfermidade; porém, a cura não veio e ele deixou de tomar precauções que talvez pudessem ter evitado sua morte prematura.



1.2.2 Miguel Vieira Ferreira




Um exemplo mais próximo de um movimento com características carismáticas é aquele ligado ao Dr. Miguel Vieira Ferreira (1837-1885), um antigo membro da Igreja Presbiteriana do Rio Janeiro. Dr. Miguel era membro de uma família aristocrática do Maranhão e formou-se em engenharia na então capital do império. Antes de ingressar na Igreja Presbiteriana, havia tido contatos com o espiritismo. Foi recebido como membro da Igreja do Rio de Janeiro em 1874, durante o pastorado do Rev. Alexander L. Blackford. No início, teve um comportamento incomum. Certa vez, terminado o culto, permaneceu cerca de meia hora totalmente imóvel, sem poder mover as mãos ou os pés e abrir os olhos. Mais tarde, foi eleito presbítero e acompanhou o Rev. Blackford em viagens evangelísticas. O pastor-auxiliar da Igreja do Rio, Rev. Dilwin M. Hazlett, ocupado que estava com uma tipografia de sua propriedade, deixou o Dr. Miguel ocupar o púlpito da igreja. Este começou a fundamentar o seu ensino em sonhos e visões, pretendendo ter revelações diretas do céu (“Deus fala e quer falar de viva voz aos homens”). Em 1879, foi suspenso do presbiterato e da comunhão. Ele deixou a igreja presbiteriana com outros 27 membros e fundou a Igreja Evangélica Brasileira, que perdura até os dias atuais.[3]



1.3 O século 20



1.3.1 O pentecostalismo




O início do século 20 testemunhou um dos eventos mais marcantes da história do cristianismo. Fenômenos que até então haviam ocorrido um tanto esporadicamente, entre grupos minoritários, passaram a ser parte de um influente e vasto movimento composto de milhões de adeptos. Em muitos países, os pentecostais passaram a constituir a grande maioria dos evangélicos.


O pentecostalismo resultou de uma somatória de influências: o movimento pietista do século 18, os grandes despertamentos nos Estados Unidos, o metodismo de João Wesley e, mais especificamente, o chamado movimento de “santidade” (holiness) do final do século 19. A busca de avivamento e de santificação, ao lado de uma forte expectativa do final dos tempos, levou muitos cristãos à convicção de que haveria um derramamento especial do Espírito Santo, evidenciado pela ocorrência de manifestações sobrenaturais semelhantes àquelas mencionadas no Novo Testamento.[4]


Um importante pioneiro foi Charles Fox Parham (1873-1929), que fora criado em igrejas metodistas e “holiness,” e passou a ensinar aos seus alunos no Kansas e no Texas que os crentes deviam esperar um batismo “com o Espírito Santo e com fogo”. O evangelista R. A. Torrey (1856-1928), outrora companheiro de Dwight L. Moody, fez uma turnê mundial de reavivamento que teve o efeito de aproximar muitas pessoas que mais tarde iriam participar do movimento pentecostal. Finalmente, o evento decisivo ocorreu em um reavivamento iniciado em 1906 na Missão Fé Apostólica, na Rua Azusa, em Los Angeles, onde um ex-aluno de Parham, o pregador negro William J. Seymour (1870-1922) iniciou uma longa série de reuniões que enfatizavam o falar em línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo, a marca registrada do pentecostalismo. Logo, o movimento difundiu-se para outras cidades norte-americanas (especialmente Chicago) e para outros países.



1.3.2 O pentecostalismo no Brasil


Pouco tempo depois do seu surgimento nos Estados Unidos o movimento pentecostal chegou ao Brasil. Quase que simultaneamente, duas igrejas pentecostais iniciaram suas atividades em solo brasileiro, uma no sul e a outra no norte do país. Em poucas décadas, esse movimento haveria de transformar de modo permanente e profundo a face do protestantismo nacional.


Em um conhecido ensaio sobre o pentecostalismo brasileiro, Paul Freston observa que a história desse movimento pode ser dividida em três “ondas” de implantação de igrejas.[5] A primeira onda iniciou-se na década de 1910, com a chegada da Congregação Cristã no Brasil (1910) e da Assembléia de Deus (1911). A Congregação Cristã foi fundada pelo italiano Luigi Francescon (1866-1964), que emigrou para os Estados Unidos, converteu-se ao evangelho, tornou-se um dos fundadores da Igreja Presbiteriana Italiana, em Chicago, e eventualmente foi alcançado pelo nascente movimento pentecostal. Chegou ao Brasil em 1910, em resposta a uma profecia para que levasse a obra pentecostal aos seus patrícios. Iniciou as suas atividades entre imigrantes italianos residentes em São Paulo e Santo Antonio da Platina, no Paraná. Já a Assembléia de Deus brasileira resultou dos esforços de dois suecos de origem batista, Gunnar Vingren (1879-1933) e Daniel Berg (1885-1963), que igualmente emigraram para os Estados Unidos e foram alcançados pelo movimento pentecostal na cidade de Chicago. Os dois obreiros fixaram-se em Belém do Pará, onde passaram a freqüentar a igreja batista, cujo pastor também era de nacionalidade sueca. Alguns meses mais tarde, a mensagem pentecostal de Vingren e Berg produziu um cisma na igreja, surgindo assim o primeiro grupo da nova denominação.


Essas igrejas virtualmente dominaram o campo pentecostal durante 40 anos, pois as suas rivais eram poucas e inexpressivas.[6] Das duas pioneiras, a Assembléia de Deus foi a que mais se expandiu numérica e geograficamente, a ponto de ser praticamente a única expressão do protestantismo em alguns estados do norte.[7] A Congregação Cristã no Brasil, após um período em que ficou mais limitada à comunidade italiana, sentiu a necessidade de assegurar a sua sobrevivência por meio do trabalho entre os brasileiros.[8] Após um rápido crescimento inicial, foi ultrapassada pela Assembléia de Deus no final dos anos 40.


A segunda onda pentecostal ocorreu na década de 50 e início dos anos 60, quando o campo pentecostal se fragmentou e surgiram, entre muitos outros, três grandes grupos ainda ligados ao pentecostalismo clássico: a Igreja do Evangelho Quadrangular (1951), a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo (1955) e a Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), todas elas acentuando de maneira especial a cura divina. Essa segunda onda começou quando a urbanização e o surgimento de uma sociedade de massas possibilitam um crescimento pentecostal que rompeu com as limitações dos modelos existentes, especialmente em São Paulo. Freston argumenta que o estopim foi a chegada da Igreja Quadrangular, com seus métodos arrojados, forjados precisamente no berço dos modernos meios de comunicação de massa, a Califórnia do período entre as duas guerras mundiais.[9] Todavia, quem lucrou com o novo modelo, no primeiro momento, não foi a Igreja Quadrangular, excessivamente estrangeira, e sim a sua criativa dissidência nacionalista, a Igreja O Brasil para Cristo.


A Igreja do Evangelho Quadrangular foi fundada nos Estados Unidos pela controvertida evangelista Aimee Semple McPherson (1890-1944) e chegou ao Brasil através do missionário Harold Williams, um ex-ator de filmes de faroeste, que fundou a primeira igreja em novembro de 1951 em São João da Boa Vista, São Paulo. Em 1953 teve início a Cruzada Nacional de Evangelização, sendo Raymond Boatright o principal evangelista. Desde então a Igreja Quadrangular tem crescido constantemente, sendo uma de suas peculiaridades a forte ênfase dada ao ministério feminino.[10]


Um dos primeiros pastores da Igreja Quadrangular brasileira foi um ex-evangelista da Assembléia de Deus chamado Manoel de Mello. Em 1956, ele separou-se da Cruzada Nacional de Evangelização, organizando a campanha “O Brasil Para Cristo”, da qual eventualmente surgiu a igreja de mesmo nome. Manoel de Mello surpreendeu o mundo evangélico em 1969, quando filiou a sua igreja ao Conselho Mundial de Igrejas, filiação essa que perdurou até 1986.[11] Em 1979, a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo inaugurou o seu gigantesco templo em São Paulo, sendo orador oficial Philip Potter, secretário-geral do CMI, e estando entre os presentes o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns.[12]


Outra importante denominação da segunda onda pentecostal, a Igreja Deus é Amor, foi fundada por David Miranda (nascido em 1936), filho de um agricultor do Paraná. Vindo para São Paulo, converteu-se numa pequena igreja pentecostal e em 1962 iniciou a sua igreja em Vila Maria. Pouco depois, a igreja transferiu-se para o centro da cidade e em 1979 foi adquirida a “sede mundial” da Baixada do Glicério, um dos maiores templos evangélicos do Brasil, com capacidade para dez mil pessoas.[13]


A terceira onda histórica do pentecostalismo brasileiro começou no final dos anos 70 e ganhou força na década de 80. Sua representante máxima é a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), mas existem outros grupos expressivos como a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), as Comunidades Evangélicas, Igreja Renascer em Cristo, Comunidade Sara Nossa Terra, etc. Segundo Paul Freston, essas igrejas representam “uma atualização inovadora da inserção social e do leque de possibilidades teológicas, litúrgicas, éticas e estéticas do pentecostalismo”.[14] A terceira onda começou após a modernização autoritária do país, principalmente na área das comunicações, quando a urbanização já atingia dois terços da população, o milagre econômico estava exaurido e iniciava-se a “década perdida” dos anos 80. A onda começou e se firmou no Rio de Janeiro economicamente decadente, com sua violência, máfias de jogo e política populista. O novo pentecostalismo, também denominado “pentecostalismo autônomo”[15] por alguns estudiosos, adaptou-se facilmente à cultura urbana influenciada pela televisão e pela ética da nova geração. Uma das características do movimento é o uso inteligente dos meios de comunicação de massa, nacionalizando um pentecostalismo bem-sucedido nos Estados Unidos.[16]


Uma importante precursora dos grupos neopentecostais foi a Igreja de Nova Vida, fundada pelo canadense Robert McAlister, que rompeu com a Assembléia de Deus em 1960. A Nova Vida foi pioneira de um pentecostalismo de classe média, menos legalista, e investiu fortemente na mídia. Foi também a primeira igreja pentecostal a adotar o episcopado no Brasil. Sua maior contribuição foi ter sido um “estágio” para futuros líderes. Trabalhou com homens um pouco mais cultos e conhecedores do mundo que os líderes da primeira e segunda ondas, e sugeriu-lhes um modelo pentecostal mais culturalmente solto. Deu-lhes também uma formação indispensável para que se tornassem independentes: segundo um ex-pastor, “a primeira coisa que aprendi na Nova Vida foi como levantar uma boa oferta”.[17] Em sintonia com isso, a mensagem devia ser sempre positiva. Era o transplante do que havia de mais recente na religião americana, no estilo dos novos pregadores televisivos. A Vida Nova foi berço de três grupos da terceira onda: a IURD, a Igreja Internacional da Graça de Deus (fundada por Romildo R. Soares, cunhado de Edir Macedo, após um cisma na IURD) e a Igreja Cristo Vive.


Uma influência significativa na Igreja de Vida Nova e no surgimento do movimento neopentecostal como um todo foi a incipiente renovação carismática norte-americana. Esse movimento surgiu de modo distinto no início dos anos 60 com a ocorrência de fenômenos pentecostais fora das estruturas denominacionais do pentecostalismo clássico, ou seja, nas chamadas igrejas históricas e em grupos não denominacionais.[18] No Brasil, a chamada “renovação” produziu divisões em quase todas as igrejas históricas, com a criação de grupos como a Igreja Batista Nacional, a Igreja Metodista Wesleyana e a Igreja Presbiteriana Renovada. Para tornar esse quadro ainda mais complexo, os anos 60 também testemunharam o aparecimento da “renovação carismática católica”, que, apesar de uma relação nem sempre fácil com a hierarquia, tem adquirido crescente visibilidade em anos recentes. Em contraste com o pentecostalismo clássico, o movimento carismático, seja em sua modalidade evangélica ou católica, tem atraído principalmente pessoas de classe média, daí a sua maior preocupação com o decoro e a respeitabilidade do que se vê nos grupos populares.


Ao lado das manifestações espirituais extraordinárias como glossolália, curas, profecias e exorcismo, os carismáticos e neopentecostais brasileiros caracterizam-se por uma forte ênfase na “teologia da prosperidade,” outra influência norte-americana, difundida por líderes como Kenneth Hagin e Benny Hinn. Este tem sido um dos principais elementos do maior fenômeno ocorrido no protestantismo brasileiro nas últimas décadas: a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).[19] A igreja foi fundada por Edir Macedo (nascido em 1944), filho de um comerciante fluminense. Macedo trabalhou por 16 anos na Loteria do Estado do Rio de Janeiro, período em que subiu de contínuo até um cargo administrativo. De origem católica, ele ingressou na Igreja de Nova Vida na adolescência, deixando essa igreja para fundar a sua própria, inicialmente denominada Igreja da Bênção. Em 1977, deixou o emprego público para dedicar-se integralmente ao trabalho religioso. Nesse mesmo ano surgiu o nome Igreja Universal do Reino de Deus e o primeiro programa de rádio. Macedo residiu nos Estados Unidos de 1986 a 1989. Quando retornou ao Brasil, transferiu a sede da igreja para São Paulo e adquiriu a Rede Record. Em 1990, a IURD elegeu três deputados federais. Macedo esteve preso por doze dias em 1992, sob a acusação de estelionato, charlatanismo e curandeirismo.[20] O acontecimento que deu maior publicidade à IURD nos últimos anos foi o episódio do “chute na santa,” quando, em um programa de televisão transmitido em 12 de outubro de 1995, o bispo Sergio von Helde referiu-se de modo desairoso à virgem Maria, dando alguns chutes numa imagem da mesma.[21]


Outro grupo neopentecostal que também dá grande ênfase à teologia da prosperidade e tem despertado muito atenção da imprensa nos últimos meses é a Igreja Renascer em Cristo, fundada em 1985 pelo “apóstolo” Estevam Hernandes e sua esposa, a bispa ou “episcopisa” Sônia Hernandes. À semelhança de outros líderes pentecostais, Estevam teve uma origem humilde como filho de um jardineiro de cemitério e começou a trabalhar aos 7 anos, fazendo carreto em feiras livres. Mais tarde, desiludido com o catolicismo, filiou-se a uma igreja pentecostal, onde conheceu a futura esposa. Sete anos depois, casaram-se e decidiram fundar sua própria igreja, que hoje conta com cerca de 50 mil fiéis e mais de 200 templos.[22] À semelhança dos pastores da IURD, o casal Hernandes tem grande habilidade em conseguir contribuições dos fiéis; todavia, ao contrário de Edir Macedo, ostenta com orgulho sinais de riqueza, como roupas caras, jóias e automóveis importados. O casal é proprietário da rentável Rede Gospel de Comunicação e procurou assumir o controle da Rede Manchete de televisão.


Devido às suas características intrínsecas e à sua capacidade de adaptação às necessidades e expectativas de vastos setores da população brasileira, o movimento neopentecostal está longe de perder o seu ímpeto. É possível que surjam novos segmentos e os antigos grupos tomem rumos ainda insuspeitados.


2. Características do neopentecostalismo
Obviamente, o neopentecostalismo ou “pentecostalismo autônomo”[23] partilha das mesmas convicções, valores e práticas do pentecostalismo clássico: ênfase nos dons espirituais, especialmente os mais extraordinários (línguas, profecias, curas); forte emotividade, especialmente nos cultos; ênfase à pessoa e atividade do Espírito Santo; valorização da figura do líder (o “ungido do Senhor”); preocupação constante com as forças do mal; e grande ênfase ao conceito de “poder.”


Todavia, os grupos neopentecostais distinguem-se da sua matriz ou por darem uma ênfase incomum a determinados aspectos da herança pentecostal (por exemplo, curas, revelações e exorcismo), ou por adotarem novas idéias e práticas, muitas delas provindas dos Estados Unidos (como batalha espiritual, o “evangelho” da prosperidade, maldição hereditária e assim por diante). Aliás, um dos traços mais marcantes do neopentecostalismo é sua criatividade, sua capacidade de inovação. No esforço de manter o interesse dos fiéis e evitar a rotina, continuamente são apresentados novos slogans, ensinos e práticas. O melhor exemplo é a Igreja Universal do Reino de Deus, com suas correntes de oração e suas campanhas de prosperidade (por exemplo, a “fogueira santa de Israel”).


É curioso como a América do Norte continua a ser a fonte de inspiração para os neopentecostais brasileiros, assim como o foi e continua sendo para os pentecostais clássicos. Autores e pregadores como Kenneth Hagin, Morris Cerullo e Benny Hinn têm exercido poderosa influência através dos seus livros, vídeos, programas de televisão e visitas ao Brasil. Benny Hinn tem sido especialmente influente por encarnar alguns dos valores mais apreciados em muitos círculos neopentecostais, como o sucesso e a prosperidade, apesar de muitos de seus ensinos serem questionados por diferentes observadores. Há alguns anos os fenômenos ocorridos na famosa Igreja do Aeroporto de Toronto, no Canadá, também despertaram enorme curiosidade e desejo de imitação. Essa igreja inicialmente estava filiada ao ministério Vineyard, fundado por John Wimber na Califórnia, sendo depois desligada do mesmo devido aos seus excessos. A chamada “bênção de Toronto” incluía práticas como gargalhadas incontroláveis (o “riso santo”), cair no Espírito, ficar estendido no carpete, emitir sons de animais (urros, latidos), tudo supostamente como conseqüência da presença do Espírito Santo.


Vejamos de modo mais específico algumas características neopentecostais nas áreas doutrinária e prática.



2.1. Atitude quanto às Escrituras




A questão básica, da qual decorrem todas as demais, tem a ver com o lugar ocupado pelas Escrituras na teologia das igrejas neopentecostais. Três fatores, entre outros, contribuem para tornar relativo o valor das Escrituras em muitas igrejas:


(a) A ênfase na experiência: quando a experiência pessoal se torna um critério de verdade, a Escritura tende a ficar em segundo plano; se, por exemplo, uma determinada prática produz resultados ou faz a pessoa sentir-se bem, isso é o que importa.


(b) O apelo a revelações: obviamente, se alguém acredita que Deus continua a revelar-se de maneira direta, imediata, isso tende a relativizar as Escrituras; elas não mais são a revelação final de Deus, a única regra de fé e prática para o crente. Quando um pregador diz “o Senhor me revelou ou o Senhor me mostrou isso ou aquilo”, tudo pode acontecer, e é proibido questionar, pois é palavra do Senhor.


(c) Uso questionável das Escrituras: quando as Escrituras são utilizadas, muitas vezes isso é acompanhado de interpretações tendenciosas, uso seletivo de certas passagens ou ênfases inadequadas. Muitos ensinos e práticas neopentecostais têm alguma fundamentação bíblica, mas recebem uma ênfase muito maior do que se vê nas próprias Escrituras, no ensino de Cristo e dos apóstolos ou na prática da igreja primitiva. Veremos adiante alguns exemplos disso.


Nesse aspecto, os reformadores do século 16 têm muito a nos ensinar:


Em primeiro lugar, com o seu princípio fundamental de “sola Scriptura”. Ou seja, reagindo contra as tradições extrabíblicas do catolicismo medieval, os reformadores afirmaram que somente a Escritura deve ser a norma, o padrão de fé e de conduta para o cristão. Tudo o que não está de acordo com as Escrituras ou que não pode ser claramente fundamentado nelas, deve ser firmemente rejeitado.


Em segundo lugar, através de princípios saudáveis e equilibrados de interpretação bíblica: não isolar o texto do seu contexto, considerar o que a Bíblia inteira diz acerca de um determinado assunto (a “analogia da Escritura”), levar em conta as circunstâncias em que o texto ou livro foi escrito e a intenção original do autor (método histórico-gramatical).


Em terceiro lugar, mostrando que não se deve fazer separação entre o Espírito e a Palavra. Sendo o Espírito Santo o autor último das Escrituras, ele não pode dizer uma coisa na Bíblia e outra coisa através de revelações especiais que conflitam com a Escritura. Por exemplo, ele não pode dizer na Bíblia que ninguém sabe o dia da volta de Cristo e depois revelar a alguém que Cristo vai voltar no ano tal e tal.


Neste último ponto, Calvino foi muito enfático em suas Institutas (Livro I, Capítulo IX), ao condenar os “entusiastas” ou “libertinos” que queriam chegar a Deus por outros meios que não as Escrituras. O reformador aponta para a reverência demonstrada pelos primeiros cristãos para com a Escritura e mostra a contínua importância, necessidade e validade da Palavra de Deus escrita (2 Tm 3.16-17). O Espírito Santo foi enviado, não para revelar coisas novas, mas para lembrar aos cristãos o que Cristo havia ensinado (Jo 14.26). Qualquer “revelação” que vá além do evangelho bíblico deve ser rejeitada como mentirosa (Gl 1.6-9). O Espírito Santo sempre atua em consonância com as Escrituras, que dele provêm. Por outro lado, é o testemunho interno do Espírito que nos permite reconhecer a Escritura como Palavra de Deus e experimentar a sua eficácia.



2.2 Ensinos e práticas




Vejamos alguns ensinos e práticas neopentecostais que revelam um entendimento equivocado das Escrituras ou ênfases incompatíveis com as mesmas. É importante lembrar que nem todas as igrejas apresentam as mesmas ênfases.


(a) Confissão positiva: esse ensino também é conhecido como “palavra da fé”. Segundo o mesmo, se o cristão crê firmemente em algo e o declara de modo convicto e explícito, aquilo que ele confessa irá acontecer, pelo poder da fé. Assim, a fé é vista como um poder que tem eficácia em si mesmo. A idéia é que Deus já nos deu as suas bênçãos, as suas promessas. A única coisa que temos a fazer é nos apropriar das mesmas, pela fé. A fé libera o poder e as bênçãos de Deus. Sem essa fé, Deus nada pode fazer. E o que ativa essa força ou poder da fé são as palavras. Se alguém fala palavras de fé, obtém bons resultados e vice-versa (confissão positiva ou negativa). Tudo o que nos acontece é conseqüência direta das nossas palavras. (Esses ensinos foram emitidos por autores como Kenneth Copeland e Kenneth Hagin.)[24]


Esse conceito faz da fé e das palavras de fé algo mágico, supersticioso, como um talismã. A Escritura ensina que a fé é um dom de Deus e que Deus atua e abençoa mediante a fé ou independentemente dela, como Senhor que é. Por outro lado, fé não significa força ou poder, mas uma atitude de confiança e dependência de Deus.


Associada com a confissão positiva está a idéia de posse, herança, como nas palavras de um conhecido corinho: “Tudo que o Senhor conquistou na cruz, é direito nosso, é nossa herança”. Assim, o crente deve “exigir” que Deus conceda as bênçãos e cumpra as promessas. Com isso, o relacionamento com Deus deixa de ser baseado na sua livre e soberana graça para concentrar-se em direitos e exigências.



(b) Saúde e prosperidade: essa é outra criação norte-americana que tem exercido um fascínio tremendo em um país carente de recursos como o Brasil. Na realidade, essa ênfase está mais de acordo com os valores da cultura americana do que com os valores do evangelho. Certamente Deus promete bênçãos materiais aos seus filhos, entre as quais se incluem saúde física e prosperidade financeira. Todavia, isso nunca foi uma parte central da mensagem pregada por Cristo ou pelos apóstolos. Esses temas nunca tiveram nos ensinos e na pregação deles o destaque que ocupa no culto e na vida de tantas igrejas modernas.


Um dos aspectos mais preocupantes é a insistência unilateral em bênçãos materiais, muitas vezes em detrimento de saúde e prosperidade na vida espiritual, no relacionamento com Deus, na vida emocional, nas relações familiares, na vida comunitária. Essa preocupação materialista e individualista casa-se muito bem com os interesses da sociedade de consumo, mas não com o evangelho que nos conclama a repartir, a ser solidários com os outros, que nos convida a amar a Deus pelo que Deus é, independentemente do que ele possa nos dar.


A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é a que mais se destaca nessa área, pois que toda a sua atividade gira em torno do trinômio exorcismo-cura-prosperidade. Daí vermos, pela TV ou em outros ambientes, cenas desagradáveis de pregadores que condicionam o recebimento de bênçãos à entrega das maiores ofertas possíveis, ou, como costumam dizer, ao “sacrifício” dos fiéis. Esse não é o evangelho da graça anunciado por Cristo e pregado pela igreja apostólica, um evangelho que não se baseia em merecimentos humanos ou conquistas humanas, mas que se fundamenta no amor de Deus oferecido gratuitamente em Cristo. (“De graça recebestes, de graça daí” – Mt 10.8b; ver 1 Co 2.12). Jesus ensinou claramente os seus discípulos a não buscarem prioritariamente bênçãos materiais, e sim a buscarem em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, “e todas estas coisas [alimento, vestes, saúde] vos serão acrescentadas” (Mt 6.33).


(c) Batalha espiritual:[25] dentre as várias correntes de batalha espiritual, uma das mais populares no Brasil é aquela liderada por C. Peter Wagner, diretor e professor da Escola de Missões Mundiais do Seminário Fuller, na Califórnia. Wagner é também um dos principais expoentes do “movimento do crescimento da igreja”. Um ensino característico dessa corrente é a noção de “espíritos territoriais”, isto é, demônios que mantêm determinadas regiões geográficas sob o domínio da incredulidade e do pecado. No Brasil, uma das principais divulgadoras dessas idéias é a autora Neuza Itioka, que já escreveu vários livros sobre o assunto.


A batalha espiritual vê a realidade acima de tudo em termos de um conflito mortal entre Deus e o maligno, tendo como campo de batalha o mundo e as vidas dos crentes. Deus passa a ser visto como um Deus guerreiro, um “homem de guerra”, e existe um grande número de corinhos que explora essa temática. Com muita freqüência essa questão é abordada em termos triunfalistas: como o Senhor está ao nosso lado, ninguém pode conosco, nenhum mal nos atingirá, como afirmam certos versículos dos Salmos e outros livros. Nos últimos anos, incorporaram-se ao vocabulário evangélico certas expressões que antes nunca haviam sido usadas pelos crentes: “Eu repreendo isso ou aquilo” ou “Está amarrado em nome de Jesus”.


Novamente, o problema com esse ensino não é o seu caráter extrabíblico. A Escritura certamente fala, e muito, sobre o conflito entre Deus (e seus filhos) e as hostes do mal, como na conhecida passagem de Efésios 6.10-20. O problema está em certas implicações ou conclusões, nem sempre fundamentadas de modo claro nas Escrituras, mas derivadas da imaginação fértil dos autores. Alguns exemplos: demônios territoriais, cristãos possuídos pelo demônio, demônios com nomes fantasiosos, demônios coloridos ou mal-cheirosos e assim por diante. Nada disso é apoiado pelas Escrituras.


Outra tendência preocupante é relacionar todo problema ou pecado com algum demônio. Se a pessoa é preguiçosa, está possuída ou influenciada pelo demônio da preguiça; se é ansiosa ou depressiva, está sob a influência do demônio da depressão. Daí a preocupação em expulsar ou em amarrar demônios a torto e a direto. Esses ensinos, que muitas vezes não passam de meras opiniões, deixam de levar em conta o ensino bíblico de que vivemos em um mundo decaído, que sofre as conseqüências do pecado e do juízo de Deus contra o mesmo. Nem todo “mal” vem do demônio: há males que decorrem das nossas limitações, das circunstâncias do mundo (catástrofes naturais, por exemplo, que atingem tanto crentes quanto descrentes) e o próprio Deus pode enviar males com propósitos de juízo ou de disciplina (Is 45.7; Hb 12.4-13).


A preocupação desmedida com as forças malignas não reflete o ensino equilibrado das Escrituras, cria temores desnecessários nas pessoas e pode ser um instrumento de manipulação emocional. Por outro lado, pode minimizar a responsabilidade individual ou coletiva por muitos pecados e erros: é mais fácil justificar certas coisas atribuindo-as à ação do inimigo. A obsessão pelo diabo também pode obscurecer a glória de Deus. Ainda que o maligno seja poderoso, ele não é todo-poderoso, como às vezes se imagina. Somente Deus é o Senhor supremo de todas as coisas. O próprio demônio está debaixo da sua autoridade.


Certamente, não devemos subestimar as forças espirituais do mal. O Senhor mesmo nos ensinou a orar: “Livra-nos do mal”. Mas nessa luta temos de usar as armas oferecidas pelo próprio Deus e não os artifícios humanos e as práticas supersticiosas que têm sido apregoados por tantos.


(d) Maldição hereditária: essa é outra área de sérias distorções. Toma-se um texto isolado como Êxodo 20.5, onde Deus afirma que castiga a maldade dos pais nos filhos até a terceira e quarta gerações, e se constrói toda uma doutrina a partir daí, uma doutrina que nunca foi ensinada por Cristo e pelos apóstolos. Para a libertação ou quebra da maldição seria necessário fazer uma árvore genealógica da família, identificar as pragas, maldições, pecados e pactos com demônios feitos pelos antepassados e anulá-los, quebrando-os e rejeitando-os em nome de Jesus Cristo.


Porém, qual é o ensino mais amplo das Escrituras sobre o assunto? Se é verdade que os pecados de uma geração podem ter sérias conseqüências para os seus descendentes, existem outras passagens sobre o assunto que devem ser levadas em consideração. É o caso de Ezequiel 18, em que Deus mostra que a responsabilidade moral é pessoal e individual: “A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai...” (vv. 4b, 20). Pela conversão e retidão de vida, o indivíduo está livre da “maldição” dos pecados de seus antepassados (vv. 14-19). O segundo mandamento (Êxodo 20.5) prevê a visitação do juízo divino sobre os descendentes de ímpios que também aborrecem a Deus como seus pais. Além disso, o Novo Testamento nos ensina que Cristo resgatou os crentes da maldição da lei (Cl 2.13-15; Gl 3.13) e que nenhuma condenação resta para os que estão em Cristo Jesus (Rm 8.1).


Isso nos leva a um outro ponto importante, que é a tendência de muitos neopentecostais de tirarem conclusões apressadas de passagens do Antigo Testamento, sem procurar entendê-las à luz da revelação mais plena de Deus em Jesus Cristo e no Novo Testamento. É preciso lembrar sempre que o Novo Testamento é a chave para a interpretação do Antigo. Como Jesus disse: “Ouvistes que foi dito aos antigos... eu, porém, vos digo...”.


(e) Exorcismos: a maneira como a expulsão de demônios é praticada em muitas igrejas ou mesmo em programas de televisão soa muito estranha à luz do ensino bíblico sobre a matéria. Jesus ocasionalmente expulsou demônios e o mesmo fizeram os apóstolos. Em igrejas como a IURD e outras, os exorcismos são parte regular dos cultos, recebendo uma ênfase totalmente desproporcional à sua importância. Novamente repete-se o mesmo padrão: toma-se um ensino ou elemento bíblico e dá-se a ele uma ênfase muito maior do que a encontrada nas próprias Escrituras.


Não raro, as sessões de exorcismo transformam-se em verdadeiros shows cheios de teatralidade, com a finalidade de impressionar o auditório. Os exorcistas dialogam com o “demônio”, brincam com ele e submetem a pessoa possessa a grandes humilhações, expondo o seu sofrimento diante de todos. Curiosamente, a maior parte das pessoas possessas pertence ao sexo feminino, como se as mulheres fossem mais pecadoras ou mais frágeis espiritualmente que os homens.


(f) Profecias: outra prática comum de certos grupos neopentecostais são as profecias, supostamente recebidas mediante revelações. Com freqüência, tais profecias expressam meros desejos ou expectativas do “profeta” em relação a uma pessoa ou grupo, mas são proferidas em tom dogmático, como se fossem tão inspiradas quanto a Bíblia. Muitas vezes, as profecias não se cumprem, os seja, são falsas profecias, o que faz de seus anunciadores falsos profetas, mas ninguém se lembra de pedir desculpas, de reconhecer que errou, que não estava falando a palavra do Senhor.


Em seu livro Evangélicos em crise, Paulo Romeiro cita uma profecia feita por Benny Hinn no dia 16 de março de 1994, quando falava na Igreja Renascer, em São Paulo.[26] Ele começou, dizendo: “O Deus Todo-Poderoso está me dizendo que esta cidade de São Paulo vai se dobrar ao nome de Jesus”. A seguir, ele afirmou que brevemente ocorreria a destruição dos poderes satânicos que controlavam a cidade e que dentro de seis meses a atmosfera espiritual de São Paulo iria começar a mudar. Como prova disso uma mulher muito conhecida, que estava enfeitiçando milhares de pessoas, iria morrer. Líderes políticos nasceriam de novo. Dentro de dois anos (1996), os crentes iriam dizer: “Deus tem feito grandes coisas”. Por fim, ele afirmou que Deus iria usar Estevam Hernandes para ser uma influência poderosa sobre os líderes políticos do Brasil, e concluiu: “Marquem minhas palavras. Não é Benny Hinn quem está falando. Assim diz o Senhor!”


Uma área em que as profecias continuam se multiplicando, apesar dos repetidos malogros de predições anteriores, diz respeito à data da volta de Cristo. Isso ocorreu de modo especial ao aproximar-se o ano 2000. Paulo Romeiro também narra as afirmações feitas pela conhecida pastora Valnice Milhomens no programa “Palavra da Fé”, transmitido em 1990 pela Rede Bandeirantes.[27] Ela afirmou inicialmente: “Deus reservou para nossa geração a plenitude de todas as coisas... Esta é a geração que verá cada palavra que está escrita na profecia vindo ao seu cumprimento. Nos próximos dez anos haverá mais profecias se cumprindo do que em todos os anos passados”. A seguir, apelando para várias revelações e fazendo uma série de cálculos aritméticos, ela concluiu que tudo se cumprirá na presente geração (40 anos), que começou em 1967 e terminará no ano 2007.


(g) Questões éticas: outra área que tem gerado preocupação quanto a algumas igrejas e líderes neopentecostais refere-se ao aspecto ético. É claro que todo e qualquer cristão está sujeito a cair, a cometer erros de maior ou menor gravidade. Todavia, certas práticas são difíceis de justificar à luz dos padrões bíblicos. Alguns exemplos: (1) Área financeira: existem igrejas e ministérios que não são transparentes quanto à maneira como recolhem e gastam as contribuições dos fiéis. Há alguns anos atrás, nos Estados Unidos, houve alguns casos notórios de desonestidade que resultaram até na prisão de um conhecido líder carismático, Jim Baker. Um caso famoso de chantagem na área financeira foi protagonizado pelo conhecido evangelista Oral Roberts. Será que no Brasil seria diferente? As práticas da IURD e o estilo de vida do casal Hernandes não têm contribuído para projetar uma boa imagem dos evangélicos junto à sociedade brasileira. (2) Área política: o crescente envolvimento dos neopentecostais com a política partidária não tem sido salutar para o testemunho evangélico em nosso país. Apesar do discurso de defesa dos interesses da comunidade evangélica ou da sociedade em geral, o que provavelmente está em vista é a defesa de agendas bem mais específicas e menos edificantes. Os precedentes nessa área não são nada animadores, como a troca de votos por concessões de rádio na época do presidente Sarney e a triste participação de evangélicos nas falcatruas do orçamento do Congresso, há alguns anos. (3) Área moral: o culto à personalidade que caracteriza certos movimentos e a noção de que não se pode tocar no “ungido do Senhor,” abre as portas para que certos líderes caiam em pecado e continuem a encontrar seguidores.



Conclusões




Muito mais poderia ser dito sobre o movimento neopentecostal. Estes são apenas alguns pontos salientes, que obviamente não esgotam o assunto. Por uma questão de justiça, é preciso reconhecer que há muitos pastores, crentes e igrejas neopentecostais que são íntegros, bem-intencionados e fiéis ao Senhor. Esses irmãos têm sido instrumentos para a conversão e transformação de vidas de milhares de brasileiros, muitos deles anteriormente escravizados pelos vícios, vivendo em miséria e violência. Um número incontável de pessoas tem encontrado nas igrejas pentecostais e neopentecostais um ambiente de calor humano, dignidade e valorização pessoal que jamais haviam experimentado até então. As igrejas neopentecostais têm trabalhado entre grupos não alcançados pelas igrejas tradicionais: de um lado, favelados, viciados, aidéticos, presidiários e outras pessoas marginalizadas; de outro lado, atletas, artistas e outros grupos mais elevados na escala social. Todavia, por mais que admiremos estes elementos positivos e sejamos gratos a Deus por eles, não podemos fechar os olhos para os aspectos preocupantes apontados anteriormente.


Há 250 anos viveu nos Estados Unidos o notável servo de Deus que foi Jonathan Edwards (1703-1758).[28] Um legítimo descendente dos puritanos, esse pastor e teólogo calvinista foi um dos instrumentos do Grande Despertamento ocorrido nas décadas de 1730 e 1740. Edwards foi um atento observador e crítico desse grande reavivamento, deixando suas impressões nos diversos livros que escreveu sobre o assunto. Ele constatou que o avivamento tinha aspectos positivos e negativos. De um lado, conversões, consagração de vidas, mudanças nos relacionamentos, atuação social; de outro lado, emocionalismo exacerbado, superficialidade, manipulação por pregadores inescrupulosos, atração por fenômenos espetaculares. Ele mesmo e a sua esposa tiveram experiências que consideraríamos incomuns. Sua conclusão geral sobre o assunto é que existem certos sinais, evidências ou frutos visíveis que demonstram se uma determinada experiência religiosa é genuína ou não: convicção de pecado, seriedade nas coisas espirituais, preocupação com a glória de Deus, apego às Escrituras, mudança no comportamento ético, relações pessoais transformadas e influência regeneradora na comunidade.


Portanto, o que se espera de nós, crentes presbiterianos, herdeiros da tradição reformada, diante do desafio do neopentecostalismo, é uma posição de equilíbrio e coerência, procurando aprender com o que as novas igrejas têm de positivo e saudável, mas rejeitando firmemente, com base nas Escrituras e na fé cristã histórica, os desvios, os exageros, as distorções humanas.



Algumas recomendações práticas:


a)      Procuremos ler bons livros sobre o assunto, principalmente aqueles escritos de uma perspectiva reformada.[29] Infelizmente, existe muita coisa ruim nas nossas livrarias evangélicas.


b)      Sejamos como os crentes bereanos (Atos 17.11), julgando todas as coisas e retendo o que é bom (1 Ts 5.21).


c)      Observemos o conselho de Paulo, seguindo a verdade em amor (Ef 4.15) e crescendo em tudo (inclusive na maturidade e discernimento) naquele que é o cabeça, Cristo.


d)      Sejamos estudantes sérios e criteriosos das Escrituras, dos nossos padrões doutrinários e da história da igreja.


Por Alderi Sousa de Matos

Publicado Originalmente no Mackenzie
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[1] Ver o estudo da Comissão Permanente de Doutrina da IPB. Igreja Universal do Reino de Deus: sua teologia e sua prática. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 20-21.


[2] Ver Alderi S. Matos. Edward Irving: precursor do movimento carismático na igreja reformada. Fides Reformata 1:2 (Jul-Dez 1996), p. 5-12.


[3] Ver o estudo de Émile-G. Léonard, O iluminismo num protestantismo de constituição recente (São Paulo: Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1988). Para o professor Léonard, “iluminismo” significa misticismo, iluminação interior.


[4] Para as origens teológicas e históricas do pentecostalismo norte-americano, ver Donald W. Dayton, Theological roots of Pentecostalism. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1987.


[5] Paul Freston. Breve história do pentecostalismo brasileiro. Em: Alberto Antoniazzi e outros. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 70-71.


[6] Fazendo um levantamento do protestantismo brasileiro em 1931, Erasmo Braga curiosamente menciona apenas de passagem as igrejas pentecostais. Todavia, os dados estatísticos que aduz ao final do livro mostram que a Assembléia de Deus já despontava como uma das principais denominações presentes no país. Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb. The Republic of Brazil: a survey of the religious situation. Londres: World Dominion Press, 1932, pp. 69, 101s, 141.


[7] Freston faz uma observação interessante sobre a Assembléia de Deus: no período em questão (1910-1950), ela tornou-se a igreja protestante nacional por excelência, sendo a única grande igreja evangélica a implantar-se e irradiar-se fora do eixo Rio-São Paulo. “Breve História”, p. 70-71.


[8] Escrevendo em 1952, o professor Émile-G. Léonard opinava haver nas Congregações Cristãs “uma profunda fraqueza, que faz com que não as possamos considerar absolutamente protestantes” – o limitado papel reservado à Bíblia. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. 2ª ed. São Paulo: JUERP/ASTE, 1981, p. 350.


[9] Freston, “Breve História”, p. 72.


[10] Duncan Alexander Reily. História documental do protestantismo no Brasil. 2ª impr. rev. São Paulo: ASTE, 1993, p. 388-391.


[11] Ibid., 376-378; Freston, “Breve História”, p. 124-25. Freston opina que a filiação foi um “casamento de conveniências”. O CMI precisava de pentecostais e Manoel de Mello, embora discordasse da teologia do CMI, queria publicidade e auxílio para projetos sociais.


[12] Reily, História Documental, p. 378-79.


[13] A Igreja Deus é Amor até hoje não utiliza a televisão, mas é proprietária de uma rede de emissoras de rádio e transmite os seus programas para toda a América Latina. Ver Leonildo S. Campos, O milagre no ar: levantamento de técnicas persuasivas num programa radiofônico em São Paulo. Simpósio – Revista Teológica da ASTE 5/2 (dezembro de 1982).


[14] Freston, “Breve História”, p. 71.


[15] Nesse sentido, designa aqueles grupos pentecostais que surgiram fora das grandes denominações brasileiras, pentecostais ou protestantes, fundados e liderados por empreendedores religiosos que preferiram estabelecer-se por conta própria, sem vínculos, inclusive, com missões estrangeiras. Ver Leonildo Silveira Campos, Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrópolis e São Paulo: Vozes/Simpósio/UMESP, 1997, p. 18.


[16] Leonildo Silveira Campos, “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo no Brasil: Aproximações e Conflitos,” em Na Força do Espírito: Os Pentecostais na América Latina – Um Desafio às Igrejas Históricas (São Paulo: Pendão Real, 1996), 84.


[17] Freston, “Breve História”, p. 132-33.


[18] Ver Charismatic movement, em Stanley M. Burgess e Gary B. McGee (orgs.). Dictionary of Pentecostal and Charismatic movements. Grand Rapids: Zondervan, 1988, p. 130.


[19] Sobre a relação entre a IURD e a teologia da prosperidade, ver Freston, “Breve História”, p. 146-153.


[20] Freston, “Breve História”, 153-56. Para uma análise completa da IURD em toda a sua complexidade, ver a obra de Leonildo S. Campos, Teatro, Templo e Mercado. Campos é professor da Universidade Metodista de São Paulo, no programa de Ciências da Religião.


[21] A revista Veja publicou uma entrevista com o bispo Von Helde na sua edição de 1º de novembro de 1995, p. 50-53. O episódio do “chute na santa” exacerbou ainda mais uma confrontação entre a IURD e a Rede Globo que vinha ocorrendo há vários meses.


[22] Revista Veja, 20 de janeiro de 1999.


[23] Por “pentecostalismo autônomo” são designadas as denominações dissidentes do pentecostalismo clássico (oriundo dos Estados Unidos) e/ou formadas em torno de lideranças fortes.


[24] Ver Hank Hanegraaff. Christianity in crisis. Eugene, Oregon: Harvest House Publishers, 1993, p. 61-102.


[25] Sobre esse tema, ver o excelente estudo do Dr. Augustus Nicodemus Lopes. O que você precisa saber sobre batalha espiritual. 2ª ed. revisada e ampliada. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.


[26] Paulo Romeiro. Evangélicos em crise: decadência doutrinária na igreja brasileira. 3ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1997, p. 88-89.


[27] Ibid., p. 183-84.


[28] Ver Alderi S. Matos. Jonathan Edwards: teólogo do coração e do intelecto. Fides Reformata 3/1 (Jan-Jun 1998), p. 72-87.


[29] Por exemplo, John F. MacArthur, Jr. Os carismáticos: um panorama doutrinário. 3ª ed. São José dos Campos: Editora Fiel, 1995.

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